Quem sou eu? O que faço

Minha foto
João Pessoa, Paraíba, Brazil
Quem sou? O que faço. Sou Maria de Lourdes, tenho, agora, 62 anos, esposa, mãe e avó, formação jurídica, com pós graduação em Direitos Humanos e Direito Processual Civil, além de um curso não concluído de Filosofia. Conheci os clássicos muito cedo, pois não tinha permissão para brincar na rua. Nosso universo – meu e de meus irmãos – era invadido, diariamente, por mestres da literatura universal, por nossos grandes autores, por contistas da literatura infanto-juvenil, revistas de informação como Seleções e/ou os populares gibis. Todos válidos para alimentar nossa sede de conhecimento. Gosto de conversar, ler, trabalhar, ouvir música, dançar. Adoro rir, ter amigos e amar. No trabalho me realizo à medida que consigo estabelecer a verdade, desconstruir a mentira, fazer valer direitos quando a injustiça parece ser a regra. Tenho a pretensão de informar, conversar, brincar com as palavras e os fatos que possam ser descritos ou comentados sob uma visão diferente. Venham comigo, embarquem nessa viagem que promete ser, a um só tempo, séria e divertida; suave e densa; clássica e atual. Somente me acompanhando você poderá exercer seu direito à críticas. Conto com sua atenção.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

O MENINO MALUCO DO MORHAN


PIRELLI, NOVINHO, NOVINHO!



Conheci Pirelli no ano de 2001, em Salvador, por ocasião do X ENCONTRO NACIONAL DO MORHAN (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase). Fui ao encontro na condição de integrante da Delegação da Paraíba.  Estavam comigo três companheiros: Hortêncio, Severina Maria e Luzinete Victor. Jamais esquecerei aquela figura de pequena estatura, muletas, óculos de lentes enormes e escuras. 


Observei-o silenciosamente. À primeira vista me pareceu, apenas, mais um daqueles filhos de Deus terrivelmente marcados pela doença e pela dor. Detendo-me, superficialmente, no que se apresentava, constatei a ausência de dedos nas mãos,  faltava-lhe uma das pernas e, também, a luz de seus olhos, há muito o havia abandonado. Fiquei arrasada. Angustiei-me, silenciosamente pensei, como deveria ser doloroso para aquele homem ter tantas sequelas.


Sempre fui dada a desafios.  Saber como poderia interagir com aquele ser humano que, apesar de tudo, ali estava era algo a me impulsionar. Fui me aproximando devagar, temerosa de causar algum mal estar.


Ouvi uma voz que parecia vir do peito e não dos lábios do companheiro e que dizia algo mais ou menos assim: pode vir, eu não mordo. Parei, pensei rápido: como ele pressentira a minha presença e minha indecisão, ato contínuo ensaiei meu melhor sorriso, como se ele o pudesse enxergar.


Disse-lhe:
 - Bom dia, tudo bem? 
 - Sim, tudo bem.  Que cheiro bom. É mulher, nova, cheirosa e vaidosa. - Ri intimamente, por ter me tornado nova, de novo, sem ajuda de ácidos, bisturi ou qualquer desses artifícios que escravizam tanta gente. 

Muito à vontade, ele continuou: 
 - Como é seu nome? Você é de onde?  - Tudo perguntado de uma vez, rapidamente. Respirei e respondi: 
- Sou Maria de Lourdes, da Paraíba. 
- É? Que bom! Veio com Severina e Hortêncio?
- Foi. 
- É do Movimento ou só observa?
- Sou do MORHAN. 
- E o que faz na vida?
-Sou Advogada. 



Apresentou-se como Pirelli e com uma natural vocação para padre, embora nada convencional, continuou, literalmente, me confessando. Fui salva, naquela ocasião, pelo toque amigo de ARTHUR em meu ombro, avisando que reiniciaríamos, em minutos, os trabalhos. O encontro, em Salvador, estava nos proporcionando excelentes discussões, abrindo um leque de informações a perder de vista.



Confesso que minha atenção foi prejudicada. Não conseguia desligar minha mente, nela estava Pirelli. Sua vivacidade, perspicácia e inteligência. Pobre de mim. Inocente.  Não sabia ainda e na melhor acepção possível da expressão, a caixinha de surpresa que era o nosso dileto amigo.



Revelou-se, ao longo do dia, um guerreiro. Combatente, lúcido, meio maluco, é certo. Porém, maluco na proporção em que abria-se, sem medo, a anunciar o estigma da doença – maquiado com pessoas bonitas que foram atingidas e que não guardavam sequelas. Maluco, também, ao denunciar as políticas de faz de contas, reservadas aos que, de algum modo, dependiam do Poder Público para “amenizar necessidades especiais”. Maluco ainda, por se fazer de desentendido em determinados momentos, ignorando abordagens, misto de inocência e esperteza. Ah Pirelli!


O encontrei várias vezes ao longo desses anos. Poderia discorrer sobre Pirelli dias a fio e ainda teria o que dizer. Até porque suas melhores facetas ainda não foram abordadas. O gozador, bagunceiro, piadista, ruidoso em suas brincadeiras, jamais passava desapercebido mesmo se no salão estivessem pessoas VIP. Ostentava qualidades que concorriam entre si, sem possibilidades de definição sobre a que mais se destacava.


Num momento era Pirelli, o conquistador. Mulherengo, irreverente, sempre disposto a novos amores. Perdoe-me a viúva se tal declaração não a satisfaz. Um colecionador de “causos” que fariam corar um frade de pedra, não se detinha ou embaraçava quando, com o microfone em riste, falava sobre a (colônia) Antônio Diogo, ou bradava contra coisas desagradáveis, ou mesmo registrava a  necessidade de união dos integrantes do Movimento e da constante vigilância para que esse não fosse envolvido em práticas desonestas. 


Os anos foram passando e os encontros sucedendo. Faço Justiça a Pirelli. Aquele que entre piscadelas de seus olhos frios pela ausência da luz, em Niterói,  me confidenciou baixinho e sério: Doutora, disseram que a senhora além de elegante, feminina, bonita, é dona de uma voz que engana os ouvidos fazendo eco com uma idade diferente da sua, gostaria de lhe ter conhecido antes. Fiquei atônita, era uma simples declaração de uma informação recebida, uma brincadeira, um elogio, uma cantada? Não consegui enquadrar o que acabara de ouvir. Nunca consegui saber se ele estava me gozando.



Pensava ainda, quando Pirelli continuou: Doutora, hoje sou um pneu velho, careca, desencapado, mas quando fui interno, menino, corria como um pneu novo, fazendo tudo o que a idade me permitia. Quando rapaz (dando uma risada), não cabia dentro de mim. Tinha todas, mesmo que elas não soubessem. Quase desabo. 

Ainda mais assustada e preocupada com o rumo da conversa, ouvi algo surpreendente: Doutora (respeitoso, entretanto objetivo), a vida vai mudando a gente, o corpo vai se acabando, a alma vai se adaptando às cicatrizes, o espírito, esse permanece livre, nos dá asas e faz sonhar. E tem mais - com aquele jeito dele - ainda bem que a Medicina dá aos já maltratados pelos anos os meios para seguir desfrutando dos prazeres da vida. 



Depois de alguns anos, entres burburinhos, risadas e comentários de corredores, entendi tudo o que aquele valente, cuja doença atingira de forma implacável, tentara me dizer naquela hora. Pirelli não se deixava abater e buscava com unhas e dentes defender o Homem que habitava suas entranhas.

Em sucessivas ocasiões tive o privilégio de encontrá-lo. Apenas em uma ocasião ouvi sua voz tremer, seu semblante tenso, seu corpo menor e mais frágil ainda. Num evento do MORHAN fomos informados que seu filho sofrera um acidente de carro. Pirelli pai não era diferente dos demais. O coração sangrava, a luta dera lugar à cautela, o guerreiro impetuoso cedera espaço ao homem amoroso. Era visível a dor, a momentânea perda de rumo. Mesmo assim usou do microfone para se desculpar com os companheiros por ter que se ausentar. Graças a Deus que tudo não passou de um susto.


Lamento profundamente a perda do companheiro. Pirelli. Que você possa continuar defendendo a boa causa, lutando o bom combate, divertindo-se, onde quer que esteja. E CONSIDERANDO A AUSÊNCIA DE UM CORPO FÍSICO, QUE VOCÊ POSSA NOVAMENTE FAZER O QUE SEMPRE GOSTOU: CORRE PIRELLI, RODA MAIS UM VEZ AQUELE PNEU QUE O DIVERTIA, VAI AO ENCONTRO DE TANTOS COMPANHEIROS QUE, COMO VOCÊ,  PARTIRAM E ALÇARAM OUTROS VOOS.