Quem sou eu? O que faço

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João Pessoa, Paraíba, Brazil
Quem sou? O que faço. Sou Maria de Lourdes, tenho, agora, 62 anos, esposa, mãe e avó, formação jurídica, com pós graduação em Direitos Humanos e Direito Processual Civil, além de um curso não concluído de Filosofia. Conheci os clássicos muito cedo, pois não tinha permissão para brincar na rua. Nosso universo – meu e de meus irmãos – era invadido, diariamente, por mestres da literatura universal, por nossos grandes autores, por contistas da literatura infanto-juvenil, revistas de informação como Seleções e/ou os populares gibis. Todos válidos para alimentar nossa sede de conhecimento. Gosto de conversar, ler, trabalhar, ouvir música, dançar. Adoro rir, ter amigos e amar. No trabalho me realizo à medida que consigo estabelecer a verdade, desconstruir a mentira, fazer valer direitos quando a injustiça parece ser a regra. Tenho a pretensão de informar, conversar, brincar com as palavras e os fatos que possam ser descritos ou comentados sob uma visão diferente. Venham comigo, embarquem nessa viagem que promete ser, a um só tempo, séria e divertida; suave e densa; clássica e atual. Somente me acompanhando você poderá exercer seu direito à críticas. Conto com sua atenção.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

CLARICE LISPECTOR


PERTENCER

Houve entre nós, por pouco mais de cinco décadas, uma criatura que se lapidava a medida  em que fazia suas opções. Uma escultura viva, moldada por um vivente que foi a um só tempo criador e criatura, incansavelmente  mergulhada em seu íntimo buscando respostas às suas indagações.  A  ininterruptas inquietações. 


Exercia a crítica não somente no sentido de separação, mas e principalmente de partejamento, de fazer aflorar a verdade, sempre focando a essência até mesmo se para isso fosse necessário refazer caminhos, ideias. Acreditava que tênues limitações justificariam uma liberdade que a levasse a respostas, naquela conjuntura, definitivas. 


Com uma atitude que poderia ser erroneamente entendida como inconstante , essa Ucraniana perseguiu, a exaustão,  o âmago de suas personagens, imiscuindo-se  em seus cérebros,  tentando apreender  todo o pensar, o agir, os intricados processos de funcionamento da psiquê. Em sua obra  o enredo é de somenos, tudo gira em torno dos atributos mentais, psíquicos de cada uma das figuras criadas para dar vida aos seus escritos. Assim Clarice via as suas criações literárias:
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."
"A descoberta do Mundo" , seleção de Crônicas originalmente publicada em coluna semanal assinada pela escritora, no Jornal do Brasil, no período compreendido entre agosto e 1967 e dezembro de 1973 nos trouxe "Pertencer", que mostra a dualidade, o tênue equilíbrio e a genialidade da autora, senão vejamos:


"Pertencer

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
 
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça. 


Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.


Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. 


Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro. 


Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos. 


Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa. 


Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida. 

No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.


Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido. 


A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!"


Clarice Lispector, no mínimo será inspiração aos que não se contentam com o óbvio. Uma mulher fantástica que conseguiu conviver e usar sua doença para melhor desvendar a alma humana. Uma escritora que explorou o existencial, fragmentando-o, indo ao fundo de seus personagens como se mergulhasse em si , exigindo respostas. Difícil, porém, fascinante!





2 comentários:

Leonardo Dantas disse...

Clarisse Linspector me lembra a minha mãe. Tinha alguns livros em cassa, especialmente depois que ela já estava mais madura... E o texto é de uma emoção intensa!
Um dia posso até lê-la também...

pensamentosnoespelho disse...

O que mais falar de Clarisse depois desta descrição e de um texto tão exemplar?

Coincidentemente, estou lendo o "A descoberta do mundo" e há muito com o que se deleitar.

Introspectivo? Diria que não. Inspirador e reflexivo? Provavelmente.

Enriquecedor, talvez seja esta a palavra que defina a leitura de Clarice.

Beijos!